sábado, 29 de janeiro de 2011

Malária cerebral em criança britânica na Nigéria

Prezado Dr Barroso,
Parabenizo-o pelo excelente artigo sobre malária, que acabo de ler em seu blog: http://malariabrasil.blogspot.com/2010/04/malaria-quimioprofilaxia-e-medidas-de.html
Uma criança britânica de 4 anos, conhecida nossa, contraiu malaria cerebral e está em coma desde ontem na Nigeria, amanhã o médico deve fazer uma transfusão de sangue para tentar salvá-la: o senhor acha ser esse o procedimento correto?
Qual a chance dela escapar da morte e quais as seqüelas?
Pelo que li, assim que possível ela deveria ser tirada daquele país, minha duvida é onde seria melhor para ela, pois o pai já havia comprado passagem para o Chile e Brasil, pois na condição dela talvez fosse melhor voltar para a Europa, que é mais próxima de onde estão...
Li, porém que regiões com mais de 1500m de altitude não favorecem o contagio - nesse caso as montanhas chilenas podem ser um bom local para ela se recuperar por uma semana, sem colocar o pai e outras pessoas em risco?
Também pensei que no Brasil talvez tenhamos mais especialistas em malária para ajudá-la, do que se voltasse para a Inglaterra. O senhor concorda com isso?
O pai dela está trabalhando em um projeto na Nigéria e por isso levou sua filhinha. Estou rezando para que ela sobreviva e minha filha adolescente já disse que vamos “adotá-la” para morar conosco aqui em São Paulo. O senhor acha que correríamos risco de também contrair malária?
Agradeço imensamente a sua atenção e, se possível, gostaria de conhecer a sua opinião pelo exposto acima...
Atenciosamente,
Tania

Prezada Tania, agradecendo o email e suas palavras sobre o artigo, informo-lhe que transfusão sangüínea em casos de malária cerebral ou não, é para repor células sanguíneas que foram destruídas pelos plasmódios, principalmente as hemácias, pois a velocidade de destruição das hemácias pelos plasmódios é muito maior que a velocidade de reposição de hemácias que nosso organismo consegue repor. E hemácia é uma célula vital para o funcionamento de todos os órgãos e sistemas, pois é ela quem leva oxigênio e metabólitos para as demais células. Informo também que para transfusão sanguínea é importante testar a contaminação do sangue antes de ser transfundido: para a AIDS, malária e hepatites, principalmente em locais com poucos recursos médicos e tecnológicos. Já tivemos aqui no RJ um caso de malária transfusional de um brasileiro vindo de um país africano. Este caso também poderia ter sido de AIDS ou hepatite. O tratamento da malária é medicamentoso com medicamentos chamados antimaláricos em qualquer fase da doença e estes devem sempre ser avaliados seus efeitos de cura através da redução da parasitemia (redução do número de protozoários no sangue) feita através de exames de sangue que são simples, chamados gota espessa ou esfregaços sanguíneos. Pois existe a possibilidade do Plasmodium estar resistente ao medicamento prescrito, com isso o caso pode evoluir, inclusive para quadros graves como o coma malárico e a malária cerebral, e a cura não ocorrer por falência terapêutica. A quimiorresistência que os plasmódios adquirem frente aos medicamentos antimaláricos representa um dos maiores entraves no controle da endemia no planeta. O arsenal terapêutico para o tratamento de malária se encurta cada vez mais. Hoje as indústrias farmacêuticas preferem pesquisar novos medicamentos para calvície do que novos antimaláricos. Dá para imaginar os motivos?...Pois é... Neste caso de malária cerebral o que pode ter havido também, foi retardo de diagnóstico e de tratamento além de desinformação sobre a doença, ou seja, de que se poderia contrair malária na Nigéria, país com alta endemicidade da doença, inclusive em áreas urbanas, e que se viesse a sentir sintomas em que o principal é a febre, deve-se imediatamente ir em busca de socorro médico, achando que contraiu malária, com isso o quadro poderia não evoluir para suas formas graves, como dito anteriormente. Quanto maior a velocidade no diagnóstico e no tratamento da malária, assim que aparecem os sintomas, melhores são os prognósticos para o tratamento e cura da doença. Cerca de 90% dos casos de malária na Nigéria são causados pelo P. falciparum, o protozoário mais agressivo da doença e responsável por quase 100% dos óbitos por malária no planeta. Infelizmente são poucos os casos de malária cerebral que sobrevivem sem seqüelas, pois há comprometimento das células cerebrais e de todo sistema nervoso central, precedido na maioria das vezes por falência de vários outros órgãos como os rins, os pulmões, o baço e o fígado, que acabam se tornando casos graves em função dessas complicações clínicas. A maioria desses casos são emergências médicas e casos de CTI, isto é, de Centro de Tratamento Intensivo. Casos graves de malária como esse exigem tratamento intensivo e não devem ser removidos para lugares distantes, a não ser que o hospital apresente precários recursos médicos-assistenciais que comprometam a vida. Pesquisadores americanos da Michigan State University-USA, em estudo recente com crianças africanas mostrou que quase um terço dos sobreviventes de malária cerebral desenvolveu epilepsia ou outros distúrbios de comportamento que apareceram pós alta hospitalar. A febre alta e complicações advindas do entupimento das artérias de pequeno calibre pelas células parasitadas com os plasmódios lesionam o tecido cerebral e comprometem as células nervosas. A destruição do tecido nervoso pode deixar seqüelas das mais variadas e inesperadas formas. Existe um enorme fardo dos distúrbios neurológicos pós-malária, principalmente em crianças.
Países que não têm malária de forma endêmica como a Inglaterra e o Chile, têm poucos profissionais médicos com experiência além de poucos e concentrados recursos laboratoriais para diagnóstico e tratamento de malária. Isso também ocorre no Brasil em regiões de transmissão interrompida, como a região extra-amazônica. Hoje lhe informo que a malária está sem controle no planeta, principalmente nos países africanos. E a AIDS na África não está diferente da malária. O que está acontecendo com essa criança, acontece com milhares de outras crianças africanas todos os anos, infelizmente. No Brasil, podemos contrair malária na Amazônia, que corresponde a cerca de 50% do território brasileiro, em regiões de Mata Atlântica na região sudeste (ES,RJ,SP e SC) e no vale do Rio Paraná, além de riscos de reintrodução da doença através de casos importados onde existe o mosquito transmissor da doença. No Brasil não temos transmissão de malária em áreas urbanas como SP e RJ, porque não temos mosquitos transmissores nessas regiões urbanizadas. Na maioria dos países africanos a urbanização de mosquitos transmissores de malária é uma realidade. Tanto os mosquitos como nós, estamos em constante luta pela sobrevivência, manutenção da vida e preservação da espécie. Os mosquitos se adaptam muito facilmente às mais adversas condições de vida e sobrevivência, às vezes muito diferentes das que estão acostumados. Apesar de não possuirmos transmissão de malária em áreas urbanas do RJ e SP por não possuirmos o mosquito transmissor, temos uma letalidade por malária de casos importados dezenas de vezes maior que na Amazônia em função da desinformação sobre a doença. A exceção de transmissão de malária em áreas urbanas fica para o entorno das cidades da Amazônia onde ocorrem casos, como Manaus, Belém e Boa Vista por exemplo. Para que um novo caso de malária ocorra é necessário que alguém com malária permaneça sem diagnóstico e tratamento em determinada região e exposto aos mosquitos do gênero Anopheles, transmissores. Se tratarmos o doente com malária antes dele ser picado por novos mosquitos, conseguimos romper o ciclo da doença evitando a transmissão, o aparecimento de novos casos e a ocorrência de surtos ou epidemias. Isolar e tratar o paciente doente em quartos telados em áreas de transmissão é uma excelente medida para não infectar novos mosquitos e por conta disso, não ocorrerem novos casos. Isso também vale para interromper a transmissão de dengue em áreas urbanas e quase ninguém usa dessa estratégia. Uma das diferenças entre o mosquito da dengue e o da malária, é que a prole de um mosquito da dengue infectado com o vírus da dengue já nasce toda infectada, pronto para transmitir a doença. E o mosquito da malária não. Cada mosquito transmissor de malária para se infectar com o Plasmodium precisa picar um homem doente com a malária . Resumindo, é muito mais fácil controlar malária do que dengue por causa disso, sob esse ponto de vista. Existe também a possibilidade de se contrair malária em portos e aeroportos, pois o mosquito infectado com o Plasmodium pode vir dentro de navios e aviões vindos de áreas endêmicas ou de transmissão, infelizmente também quase ninguém se importa ou sabe disso. Pois é, não é de hoje que a malária anda caminhando com suas próprias pernas, com suas poucas pernas e com suas curtas pernas. Precisamos sair da condição de expectadores desse sofrimento humano,...pensem nisso!
Tania, continue nos informando, e conte conosco. Atenciosamente Dr Wanir Barroso, sanitarista.

Prezado Dr. Barroso,
A criança recebeu a transfusão de sangue e está respondendo ao tratamento com artesunate, usado tradicionalmente na Asia, e voltará para a Europa assim que possível. Mais uma vez agradeço a atenção,
Cordialmente,
Tania